20.8.25

A minha relutância ao uso de perfumes e fragrâncias não é só visceral, sensual, é também sentimental. Estranho muito que se atribua aos perfumes responsabilidade pelo charme e boa imagem individual ou que sejam considerados recursos de sedução, mais ainda que se usem para mascarar odores naturais. Frascos produzidos em série e colocados no mercado aos biliões, consoante modas, correntes, tendências, mitos, narrativas e estratégias, não personalizam, antes diluem a originalidade, a graça e a memória que cada um deixa.
Ontem, às compras no pingo doce, voltei a comprová-lo quando senti o cheiro do teu perfume. Paralisei, primeiro, depois não resisti e lancei-me na busca da sua origem, farejando devagar, arrastando o passo, simulando interesse em produtos que não pretendia, indo e vindo de acordo com a impressão de proximidade ao aroma. Inebriada, seduzida, abrandei no talho e, para ganhar tempo, dei comigo a estudar minuciosamente os escalopes de novilho, os hambúrgueres de picanha, os lombinhos, o entrecosto, as febras — o teu perfume cada vez mais perto  — , os peitos de frango, os bifes extrafinos, as coxas, as asas, os miúdos, parei nas espetadas de peru, certa de que era ali, e escutei a voz simpática do repositor de carnes: a senhora precisa de ajuda? 

18.8.25

Num destes serões tropicais a que a Invicta nunca se habitua e que mantêm humanos e bicharada cativos de um sentimento de desistência, como se por mais nada, além de respirar, a vida valesse a pena, a rapariga da papelaria disse ao homem maduro, sem qualquer preparação: desculpa, mas não é isto que eu quero para mim
É quase sempre assim a crueldade: um golpe seco, sem cerimónias, escudado no falso pretexto de abreviar a dor. A bondade  dizem  costuma ser mais trabalhosa, impõe algum brio e sensibilidade, é preciso escolher a hora certa, amaciar bem os humores do outro até que não lhe sobre vontade de desdizer os factos. Mas é sabido que aquilo a que uns chamam de bondade é, muitas vezes, capa de disfarce do medo e que os cuidados que temos não servem senão de amparo ao nosso próprio desconforto. 
De resto, a verdade é que as palavras inúteis atrasam o mundo e quanto mais tempo nelas nos perdemos, mais adiamos a realização do fundamental. Portanto, agora, mais do que as razões de tão seco e breve golpe, importam a causa e as urgências que levaram à decisão de rutura.
Estranha-se muito (e não é a primeira vez que disso se fala) que o amor se tenha revelado, para a rapariga da papelaria, muito aquém daquilo que imaginou. Ao invés de uma sublime realização, aquela a que todos os românticos aspiram e pela qual sofrem, sangram e versejam, o amor mostrou-se, afinal, uma forma pálida, desengraçada, onde a paz e a segurança excederam o sobressalto e a vertigem e, assim, deixou de dar prova de grandeza. A conquista do homem maduro, que parecia impossível dada a longevidade e o estado de cristalização do casamento, reavivara, na boca dela, um gosto que já vinha de trás, do pai de Alicita e sabe-se lá de que outras paixonetas: o gosto pelo impossível, pela dúvida, pela iminência do abandono, pela febre e pela autocomiseração. Lembremo-nos que foi apontada por se prestar ao papel de amásia, depois acusada de desintegrar famílias, mais tarde insinuaram que não passava de um fundo de reserva para um homem cujo casamento já andava há muito pelas ruas da amargura mas que jamais lhe poria fim se não tivesse outra a quem se agarrar logo na primeira noite. E, afinal, o sabor da vitória que se seguiu a toda esta desarrumação emocional não esteve à altura. O homem maduro ao seu lado, amando-a e deixando-se amar por ela com tantas certezas e de forma tão leve, tão real —  uma pasmaceira.
Desculpa, mas não é isto que eu quero para mim. 

(ao cabo de duas semanas de observação, apercebo-me que, ao contrário dos outros gatos, Rasputin não vem para comer. Fareja, estuda, intui, mas não toca em nada do que lhe ofereço. Vem em busca das minhas sombras e nelas se deita, à confiança, para uma soneca. Por vezes, ao chegar a casa, até o encontro aninhado na soleira. Quero acreditar que me espera, mas logo me deixo de ilusões ao vê-lo afastar-se, ligeiro, sem disposição para se dar, assim que violo a distância mínima de segurança. No dia seguinte volta. Isto, que a mim cansa e desinteressa, isto é precisamente o que a rapariga da papelaria quer para ela.)

14.8.25

Debaixo da minha janela de agosto, a desoras, passam conversas de um lado para o outro. Casais, amigos, famílias, amantes, adolescentes, companheiros de circunstância, sejam o que forem, têm enchido o meu bloco de notas com estes comentários:

Podes vir tu, pode vir o presidente da república, pode vir o papa, pode vir deus, pode vir o caralho... olha, até pode vir a Cristina, que eu não vou mudar de ideias.
(supondo que a intenção fosse uma ordem crescente de poder, não tenho pensado noutra coisa: onde encontrar a Cristina?)

*

Estou casada contigo há quinze anos e tu nada, nadinha, nunca! Nem uma tostinha mista me fizestes...

*

— Na terra dos meus avós há uma ponte com mil anos. 
— Nossa, que país maravilhoso esse Portugal, 'cês deveriam se orgulhar.

*

Tu só tens de lhe perguntar: queres ou não queres? E a partir daí ele só tem duas opções: ou quer ou não quer. Isto parece muito básico mas é uma coisa que a maioria das pessoas não compreende.

*

— Ó Beni, tu és do signo peixes, pois és?
— Sou, porquê?
— Então deves ter ascendente em piranha.
— Estupor, só não te parto a cara porque tenho pena de ti.
— Tu? Pena de mim? 
— Sim, por seres touro com ascendente em corno manso.

*

Olha, uma coisa que eu aprendi na vida é que um gajo só com a mulher não se sabe governar. Das duas, uma: ou tem uma boa mãe ou desenrasca uma amante.

*

O meu filho tem muito boa índole, Sãozinha, e tu sabes. O que ele não gosta é de cumprir a lei.

*

— A única coisa que uma pessoa precisa na vida é uma luz. Uma pessoa tendo uma luz encontra os caminhos todos.
— Uma luz? Em que sentido?
— Uma luz. Sei lá, uma luz, a tua luz, a que tu quiseres.
— Tipo uma religião?
— Ó pá, uma luz, não sabes o que é uma luz?
— Sei, mas há muitos tipos de luzes.
— Esquece, tu complicas muito.

*

Estás outra vez com essa merda da conjuntivite? Não percebo, tudo o que te aparece de estranho, ou bem que é no olho de cima, ou bem que é no olho de baixo.
(muitos risos)

10.8.25

Com os olhos pregados no FlightAware, vigio o itinerário do rapaz voador como aos passos da sua infância, sabendo que em breve lhe perderei o rasto. Não tenho coração suficiente para as suas ganas, para os lugares remotos, marginais, onde se mete, sou tão cobarde que a sua bravura me asfixia. Choro como uma Madalena, arrependida da educação que lhe dei, antes tivesse posto às costas dele toda a minha carga de medos e ninguém havia de me julgar, porque aos primogénitos é hábito ser cobrada a continuação dos pais, a realização dos seus sonhos abortados, a compensação dos seus aquéns. 
O menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno proporciona-me uma versão mais plácida da vida. Com ele o tempo ganha vagar e tolerância, estiro-me, dou-me às ligeirezas do corpo e do espírito, às vezes ouço-o elaborar acerca de coisas muito antigas, impérios, deuses, pedras, tesouros, tratados, conquistadores insanos, desastres sobre os quais já não podemos agir e assim fingimos que não devemos ao mundo mais do que pensá-lo  estudiosos, porém, desresponsabilizados. Mas sem o desassossego e a ambição do rapaz voador fico desfalcada, falta-me o contraditório, não há quem escancare as janelas e apresse as horas e conjugue os verbos no futuro e volte para casa espantado, a contar dos olhos gelados dos tubarões ou da malha caída por onde escoa a lucidez dos Homens. 
Que hão de fazer as mães como eu, cujos filhos em tanto lhe são opostos e se opõem entre si? Se um tudo busca saber, o outro só se contenta quando vê, e eu, que pouco sei e quase nada vi, vivo assim, desautorizada nesta triangulação amorosa, incapaz de os subjugar ao meu código genético e aos meus humores. Nem de um nem de outro jamais alguém dirá vê-se logo que és filho da tua mãe e por isso sei que, no dia em que eu morrer, morrerei mesmo.

9.8.25

Esta noite voltei a superar-me. Os doutores da psique e outros intérpretes de zonas subterrâneas muito apurariam, certamente, de tudo o que sou capaz de enredar quando estou sob a custódia de Morfeu. Mas, no grau de sofisticação a que cheguei, seria muito mais proveitosa para todos uma parceria com David Cronenberg.

7.8.25

Enamorei-me de um gato preto que vem quotidianamente dormitar nas sombras do meu jardim de agosto. Muitos outros vêm e a todos vou dando de comer e de beber mas, como é próprio dos gatos, nenhum consente aproximações ou se deixa ficar depois de saciado. Por mim está bem assim porque, de qualquer modo, não tenho, jamais tive, esse velho e vulgar fascínio pelos felinos, desagradam-me os trânsitos dissimulados, a postura egoica de quem dá por certos os aduladores, e o olhar fixo, que me trespassa a consciência e desafia para um jogo de propósitos ocultos. Também não vibro com os seus atos de insubordinação, tampouco me seduzem as elaborações em torno do mistério, da sensualidade e da dimensão psíquica que lhes atribuem. Entre o rol de espécies protagonistas do sobrenatural, agentes de magia e mensageiros lunares, prefiro de longe o lobo. Oposto ao gato, que tantos invejam pelo desapego, o lobo tem a nobilíssima virtude da lealdade, que aprecio sobre quaisquer outras. 
Mas este gato que dormita nas sombras do meu jardim de agosto, este gato interessa-me. Tenho deixado a porta de casa entreaberta  a mais gentil de todas as armadilhas  supondo que nele, como em mim, possa haver um instante em que a curiosidade supere a desconfiança. Um dia destes. E, embora nomear seja coisa que evito porque, de alguma forma, nomear é predestinar, decidi chamá-lo de Rasputin.

31.7.25

Por razões que pouco importam, dei comigo, esta noite, a lembrar o tempo do confinamento, das brincadeirinhas burguesas alardeadas nas redes sociais, era quem mais fazia pão, devorava livros e pregava a elevação da humanidade a um estádio superior, olhando as ruas vazias com uma espécie de romantismo trágico, cheio de pieguice e privilégio. Ligavam uns aos outros com lições de moral e afastavam-se entre si, como heróis, em nome de um bem maior, um bem comum, que os pivôs dos noticiários nutriam com sermões risíveis e insultuosos. 
Os avós dos meus filhos nunca deixaram de os receber. Recusaram-se a obedecer a esse paternalismo que encheu de culpas os corações das crianças e hipotecou a sensatez dos adultos ao ponto do abandono. Os avós dos meus filhos diziam que, de qualquer forma, estavam na reta final da vida e que a ideia de a passar longe dos que amam em troca de mais ou menos um ano neste mundo seria uma escolha absurda, desumana e, essa sim, egoísta. Até hoje, nenhum de nós se arrepende de ter confiado na medida urgente do amor e do afeto.

28.7.25

Não adormeças na curva humilde deste corpo, não faças do meu dorso travesseiro. Receio que o peso da tua vida me adoeça. Já bastam outras coisas muito minhas  medos que nunca venci a morder-me o fundo das costas, mágoas velhas a gemer nas dobradiças, ossos roídos pela fome insaciável daqueles que pari, sapos vivos que ainda queimam, atravessados, a boca do meu estômago. Se divido este corpo contigo é para honrar e celebrar a sua biografia. Então, que os teus dedos se esmerem na leitura das entrelinhas, que a tua língua suavize todos os cumes, abismos e vazios, que as tuas mãos nas minhas costas despertem as raízes de um par de asas, que uma investida tua me lance no voo primordial, feroz e urgente, e que, no fim, o teu peito se dê para que eu possa despenhar-me e chorar.

16.7.25

Onde estive e o que vi esta noite, não saberia contar sem parecer insana, vulgar ou causar repulsa. Por vezes, lamento tanto a insuficiência do código verbal e sinto remorso por não ter desenvolvido formas mais sublimes de expressão, que me permitissem representar o que intuo ou testemunho sem a contaminação das palavras. O meu sono tem um impulso criativo rebuscado que, uma vez desperta, me sinto incapaz de narrar. Sou, sem dúvida, uma sonhadora genial e afirmo-o de peito farto, com orgulho de ao menos aí chegar mais longe do que prevejo ou planeio. Mas com o tempo, por falta de registos, acabarei por esquecer toda a minha obra. 

15.7.25

Temo muito o bonzinho esforçado para que os outros o saibam. Não só se afigura um idiota – o que por si só seria relativamente benigno para os restantes mortais, na medida em que poderia propiciar alguma diversão –, como acaba a tornar-se um perigo. Investe no relato da pureza dos seus pensamentos, mas não sujará as mãos a defender causa alguma. A sua ética é profundamente romântica, porém desoladoramente estéril. Fica-se por uma espécie de moralismo de pantufas, em conversa de vão de escada, moderado e cauteloso, e entra em casa e tranca a porta quando a ameaça real espreita.
Então, podes dizer-me o que achas e daí tirarei a medida do teu sentimento. Mas se não me mostras o que fizeste, jamais terei a substância do teu carácter.

10.7.25

Ao balcão do pão quente, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada vaza a dor que ontem a abalroou com a fúria de um tornado e da qual ainda não se refez: propuseram ao rapaz um lugar no Dubai, regalias e caprichos à disposição, o sonho de uma vida, e ele, sem pedir conselho ou partilhar preocupações, aceitou. Antes do fim do verão, trocará Barcelona pela cidade do futuro.
Há filhos tão empenhados na destruição das mães! Começam desde logo no ventre, silenciosos e diminutos como parasitas, consomem-lhes o corpo, a lucidez, a memória, depois semeiam no espírito delas medos e pressentimentos, avariam-lhes os nervos em noites insones e guerras quotidianas. Pedem-lhes de empréstimo a existência, um dia — quem sabe? — hão de pagar em realizações, títulos, medalhas, brilharetes entre amigos e família e o mais que venha de consolo e recompensa. Mas mal lhes largam as saias, renegam tudo e põem-se a milhas.
—  Meta-se num avião e vá lá de visita, que hoje em dia a gente pomo-nos em todo o lado num instante. É ou não é, princesa?
Diante dos olhos da professora, a quem os comprimidos extinguiram há muito a centelha da curiosidade, a empregada do pão quente pousa uma bola de Berlim ainda morna. 
— A gente põe-se ou nós pomo-nos, tens de escolher —  corrige com a boca já cheia de uma dentada urgente, excessos de creme nos cantos, um pingo atrevido a afundar-se nos refegos da papada. Faz-lhe jeito a desconversa, poupa-a de admitir que o corpo assim vagaroso, pesado, incompetente para a vida, distorce as métricas da distância e, nessa geografia plástica, o Dubai fica para lá de todas as vontades. Haviam de dizer dela o quê? Que não presta como mãe, que tem um coração árido ou, pior, que a ausência do rapaz é a retribuição pelo desleixo amoroso em que foi criado. 
Mas a empregada do pão quente insiste:
— A sério, vá. E traga chocolates, princesa, traga chocolates.
As palavras têm na professora o efeito de um estimulante. O queixo levanta-se, os olhos acendem-se e a resposta sai pronta, rigorosa, quase automática:
— Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
— Não percebi, princesa. 
Mas porque, a esta altura, a professora ri com um inesperado prazer, a empregada larga também a rir, embarcando na graça às cegas, por puro contágio. Vai crescendo em ambas o vigor do riso, uma a rir de uma coisa, outra de outra e, às páginas tantas, ambas a rir sem saber do quê, a professora em convulsões silenciosas, mal aguentando no corpo o ímpeto daquela espécie de felicidade, a empregada a atrapalhar-se toda na contagem dos moletes e uma fila de gente em suspenso, a prolongar-se até à esplanada. 
— Juro, princesa, juro que não percebi nadinha de nada...

17.6.25

Sentado num banco da alameda, habituado à condição de velho e aos seus clichés, o senhor Pereira vigia a brincadeira de Joaquim. Seis anos feitos e o menino permanece fiel à genética da mãe, nenhuma evidência da família paterna na feição ou nas cores e muito menos no perfil de homenzinho de janeiro, marcado pelas reservas e prudências de Saturno. O senhor Pereira lamenta este regime totalitário da maternidade mas tem-lhe faltado o ânimo de se expressar contra. Em bom rigor, sempre temeu a imperatriz e as suas demasias — demasiado jovem, demasiado bela, demasiado simples, demasiado segura, demasiado calada, demasiado mulher —  e, por isso, jamais teve a ousadia de um confronto, preferindo maldizer nas costas e à distância. Como é possível que uma única pessoa, que ainda por cima se comporta com a leviandade dos bichos da província, ofenda a dignidade de uma família inteira? 
— Como assim, ofender?
O senhor Pereira suspira, acusando uma trouxa de remorsos e cansaços às costas, e desconversa.
— Eu agora estranho muito algumas coisas, a menina sabe?
Sento-me ao lado dele, estranhando também, não as mesmas, mas certamente muitas coisas. A poucos metros, Joaquim empenha-se no exame às pedrinhas soltas do canteiro com um modo grave, estudioso, prematuro, e fala sozinho num idioma que não decifro — o mais certo é que seja inventado. Num vaivém saltitante, vai pousando no colo do avô uma criteriosa seleção das melhores e tenciona pintá-las assim que voltar a Penedono, na próxima semana, se a mãe o ajudar. Enquanto aprecio nele as coreografias da infância e a intimidade com a natureza, viro a cara ao senhor Pereira, porque suporto mal a visão da sua espinha dobrada, cómoda num banco da alameda. Talvez se tenha rendido à ideia de que, para nos conceder alguma paz, a vida tem de ser um acordo de cavalheiros entre a vontade e o destino. Felizmente, Joaquim está muito longe de saber disso.

4.6.25

Sobre o que é bom deve falar-se, sobre o que está mal deve agir-se. O inverso, quando não é absolutamente inútil, acaba por ser contraproducente. 
Não estou certa de ser praticante exímia desta crença que tenho. Quando me ferve o sangue, também sou tentada pela maledicência e nela dissolvo, como posso, algum do meu desconforto. Esforço-me, contudo, por atenuar essa fraqueza, limitando as más palavras à minha órbita ou deixando-as a marinar na almofada durante a noite, para que, no dia seguinte, se convertam em atos de que possa orgulhar-me.

30.5.25

Os leitores que ainda por cá andam, tolerantes com o desleixo e as intermitências deste blog, reclamaram da degeneração da viúva. Lamento a minha impotência perante as voltas da vida. Na qualidade de dependente absoluta da realidade, sem uma imaginação fértil de que me possa socorrer, vivo subjugada aos factos e mais não sei além de os relatar. 
Mas a boa notícia é que nem tudo está perdido. Na papelaria, por exemplo, as velhas suspiram pela farda e pelos olhos azuis do almirante, que está hoje na capa de todos os jornais a anunciar-se como um salvador. A elas, juntou-se a cabeleireira, e Gabi, a manicura sonsa, veio a reboque, inventando pretextos para disfarçar a curiosidade. Em torno da figura do candidato, cada uma engendra as suas fantasias, mais ou menos castas, mais ou menos atrevidas, sem, no entanto, deixar o verbo resvalar para lá da decência. Que sorte a dele! Não bastasse a imprensa toda a seu favor e os fotógrafos posicionados no ângulo certo, ainda se faz em seu nome o alarido de fim de tarde na papelaria.
—  A mim, nem que mo dessem de bandeja. É um vaidosão da treta. — diz a rapariga da papelaria, com um gesto largo de incómodo, como quem enxota moscas. Eu estou com ela. A vaidade é, de todos os pecados capitais, o que mais revela falta de inteligência. Tem o efeito oposto à intenção, pois quanto mais é feito para realçar virtudes, mais ao léu ficam as debilidades. 
A cabeleireira indigna-se e acusa a rapariga da papelaria de arrogância e desdém.
—  Olha, filha, hádes-me mostrar o teu caixote do lixo. Eu, pra mim, isto é um homem a sério. 
Atira beijos à capa do Jornal de Notícias. Gabi ri-se do devaneio adolescente da patroa mas aproveita o embalo. Se às casadas é permitido, podem certamente avançar sem medo as solteiras.
—  Um pedaço de mau caminho. Embora tenha idade para ser meu pai...
— Também o acho um senhor muito distinto.
— Tem classe, não tem, dona Fatinha?
— Nota-se que não é um qualquer. 
— Claro, um militar é um militar.
— Se fizer sempre como fez aquando da vacinação... 
— Sabe comandar. É disciplinado. Organizadinho. 
— E muito leal, de certeza. 
— O que mais falta são homens como ele, que fazem o que tem de ser feito.
— Como assim?
— Olhe, cada uma faça a sua interpretação.
— Que olhos...
— No fundo, é um herói, é o que ele é e o que sempre se disse que ele é.
— E a sotôra, vai votar nele?
A dona Maria Isabel — deus a conserve por muitos e longos anos na vizinhança deste blog — a quem a vida vivida contra correntes e dominações deu estatuto para sentenciar sobre o que bem lhe apeteça e mais ainda, pousa sobre as capas dos jornais, com delicadeza e autoridade, os dedos coroados de pedras muito antigas. 
— É engraçado como as mulheres querem sempre tanto e, no final, acabam todas por se contentar com muito poucochinho.

26.5.25

O homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta rebaixou a viúva ao território dos comuns mortais, provando que, afinal, vibra no sangue dela não apenas a poderosa energia dos que seduzem, mas também a astenia dos que se rendem.
Com um sopro mágico, apagou-se nela a expressão da volúpia e o olhar de autoridade sobre os homens na praceta. Gomos, sulcos e restantes delícias do corpo hibernam agora sob tecidos opacos, de caimento frouxo, que não ousam além do bege, do cinza e do azul do céu em dias assim-assim. Ao negrume do cabelo, capaz de criar diabólicas ilusões de ótica com o patrocínio da luz solar e das suas delicadas oscilações, substituiu-se a banalidade artificiosa do loiro. E no lugar dos sapatos de saltos finíssimos — que amiúde a encalhavam nas frestas da calçada, para consolo e diversão do senhor Pereira —, usa às vezes essas botas rasas, felpudas, aparentadas com pantufas, pelas quais há quem pague centenas de euros, embora, de aspeto, devessem confinar-se ao quarto de dormir. Não exagero se digo que a viúva é outra mulher, com o ar pragmático, quotidiano e benigno das donas de casa. Talvez se dê o caso de estar a amar e, amando, ter-se-á disposto a renunciar à sua vocação primordial e a entregar os seus trunfos. Cedo ou tarde, a pretexto de mais altos valores, quem não o faz? O amor é uma forma de corrupção como outra qualquer. 
A mulher do senhor Pereira não disfarça o alívio. Se algum dia ali teve uma inimiga, talvez possa ter agora uma aliada, alguém que finalmente aprendeu que os olhares de cobiça valem nada ao pé dos que nos adoram o rosto vincado do sono ao amanhecer. E assim a surpreendemos a comentar com o marido, em modo de elogio, aquilo que ambos concordaram em chamar discrição.
Para cada conceito existem, no mínimo, duas palavras possíveis que enquadram a realidade conforme ela nos seja adversária ou favorável. Entre essas possibilidades, há uma linha pálida e parcial, a linha da nossa conveniência. É em função dessa linha que distinguimos a obstinação da perseverança, a ganância da ambição, o desbocamento da frontalidade, a irresponsabilidade da audácia, a coscuvilhice da curiosidade, a posse da proteção, a cobardia da cautela. Distinguimos ainda os animais dos humanos, pois há muito cremos que o que em uns se apelida de irracionalidade, nos outros tem apenas a inspiradora simplicidade do erro. Do disfemismo ao eufemismo pode ir toda uma moral, uma vasta filosofia, mas também um mero juízo de circunstância, a voz de um desapontamento ou de uma febre. Reconheço que a figura da viúva se tornou inofensiva, não despertará como antes a virilidade dos homens. Mas a paz dos outros é a minha fome. Discreta para eles, insípida para mim.

24.4.25

O meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno, que é amante de todas as coisas anteriores ao tempo dele, canta no duche, com um furor desproporcionado, yes, there were times, I'm sure you knew, when I bit off more than I could chew. Esta noite sairá, pela primeira vez, por sua conta e risco. O rapaz voador ajuda-o a arranjar-se, cede-lhe uma camisa, explica-lhe que botões pode desapertar, até onde fica bem dobrar as mangas, diz-lhe que não pouse jamais o copo, ignore provocações, proteja o cartão de cidadão e, enfim, divirta-se. Depois manda-lhe que desfile para mim. 
Mãe, aprecia o teu menino, que vai conquistar a liberdade.
Quem é este, pergunto, e foge-me o chão debaixo dos pés. Com os meus olhos de mãe, que são olhos de vigília e invenção, busco nele vestígios de candura, mas é tão tarde... A infância já vai longe. As feições de querubim, os cachinhos do cabelo, o aroma do vento na nuca, tudo agora à mercê da memória, esse lugar que a fantasia gosta de corromper com um ou outro delírio e por isso nunca é absolutamente certo nem seguro. Está a um passo breve, atabalhoado, indeciso, do homem que será. Às pressas, deito a mão a uma cebola, aplico-lhe um golpe bruto e pico-a miúda para chorar sem levantar suspeitas.

14.4.25

Fui esta noite a Barcelona recuperar a inscrição na escola de dança e mudar de vida. A primavera dá-me sempre estas ganas de partir. Não sinto a exaltação de certas vontades que dizem próprias da época, como arrumar, limpar, acasalar, renovar, dar à luz. Tenho antes vontade de ser outra coisa noutro lugar, não porque o que sou, onde sou e como sou me seja fonte de infelicidade, mas por um impulso migratório desprovido de planos, em cujo destino não caberiam os meus filhos, a minha história, a minha língua, o meu ofício. Há os que são curiosos por ver, cheirar, fotografar outros lugares, eu tenho a curiosidade pelas vidas que não escolhi ou não me couberam em sorte. Mas sobre isto dispenso análise, opinião ou conselho, e por isso regressemos a Barcelona. 
A orientadora do curso acolheu-me com mais condescendência do que entusiasmo. Ainda sabia, de memória, todas as peculiaridades do meu corpo mas também, infelizmente, as do meu feitio. Posso ficar? perguntei, uma alma desaninhada, suplicante, de mão estendida. Oh, querida, também não é preciso chorares. E autorizou-me a matrícula, sob o compromisso de eu me esmerar nos trabalhos escritos e nas avaliações teóricas para compensar a deterioração dos pés e a ferrugem nos adutores. É possível que ela ainda se recorde de quando eu passava a perna para trás da cabeça, em todo o caso, de que serve o que já tenha feito se for incapaz de o repetir? As artes do corpo não se expandem por efeito de acumulação, como o conhecimento ou a experiência. Ao contrário, esgotam-se no instante em que se exibem. O tempo é sempre um inimigo e dá instruções de recuo muito precisas e localizadas. Cada proeza acabará por resultar invariavelmente numa perda, um desbaste, uma dor, uma amputação. 
Márcia, uma rapariga exótica de olhos rasgados, pele de bronze e cabelo de azeviche, que, tal como eu, veio resgatar uma vida passada, adiantou-se a dar-me guarida se eu prometesse fazer-lhe uma francesinha todas as noites. Vamos ver se consigo, tenho tanto, tanto que estudar! E já não me lembrava de estar tão feliz num sonho.

11.4.25

Aborígene! Obeso! Invisual! Vociferavam assim, sobre o árbitro, os furiosos na bancada. Ninguém me contou — ouvi eu, sempre de ouvidos espantados com a eloquência nacional. Tão rápido aprendemos que, ao polir a linguagem, contornando as ofensas primitivas que a moral coletiva já aprendeu a rejeitar, podemos odiar com a mesma força, humilhar em público, reduzir a lixo os que, bem ou mal, ponham travão às nossas ganas. Ah, saibamos escolher o verbo e jamais precisaremos de consertar o caráter. 
Como a história da humanidade tem demonstrado, a civilização não triunfa sobre a selvajaria. Não domina o animal, a sua urgência, as suas fomes, os seus instintos, apenas lhe vai ajustando o traje para que possa sempre entrar pela porta da frente e desfilar na dianteira dos cortejos sem que ninguém lhe peça contas.

9.4.25

A propósito do que ando a ler —  Eles pensavam que eram livres, Milton Mayer —  sobre a forma como, nos anos 30, os alemães comuns, cidadãos vulgares, encorparam o nazismo sem noção de que precipitavam o inferno, dou comigo a pensar no caminho que tomámos até ao estado em que hoje nos vemos. Não nos comparo a eles, nem em motivos nem em aspirações. Nós não temos nem a inocência nem a crença cega num ideal enviesado de salvação. Mas temos a cobardia e o pensamento à deriva, um torpor sentimental que nos mantém sempre em lume brando, distraídos, convenientes, ocupados na manutenção dos empregos e na conquista de um metro quadrado a preço justo. Vamos às urnas, gratos pelo que abril nos deu, mas habituados já a escolher entre fantoches e fanfarrões, entre a miséria, a indecência, a imbecilidade, a ladroagem e a cara-de-pau. Pobres de nós, tão civilizados e instruídos, quem diria? 
A mim e aos da minha geração, fizeram-nos fracos. Nascemos livres sem esforço, crescemos com o dinheiro a entrar por todas as portas do país, vimos abrirem-se estradas, caírem os muros, entenderem-se os opostos, assinarem-se os tratados, aliarem-se as nações. Que promissor o mundo da minha adolescência, afinal a humanidade é cheia de boas intenções, oh, os maus topam-se à distância e a tempo nas suas latitudes retardadas e surreais. Aos vinte e cinco anos podíamos ser empresários e ter casa própria e os nossos pais bendiziam as nossas oportunidades, direitos e garantias, frutos suculentos que colhíamos do amargor, das penas e dos gritos que eles haviam plantado. E foi assim que desaprendemos o hábito da resistência e do combate, com orgulho e boa fé depusemos as armas, descansámos das desgraças do mundo, apostámos as fichas todas na realização profissional. Foi assim que fomos ficando cegos e egocentrados e agora temos os braços flácidos, os punhos frouxos, as nossas paixões são mansinhas, quase melancólicas, e ainda nos dizem que temos falta de sono, falta de sol, falta de saúde, falta de amor.
É direito de cada um escolher a quem deve obediência, em que mãos entrega o seu caráter para efeitos de desresponsabilização, sob o jugo de que rédea o seu passo é acertado. E a História está cheia de fracas escolhas. Mas nós, pior, já nem sequer escolhemos e assim acabaremos por devolver, de cabeça baixa e na mesma bandeja em que nos foi dada, a herança dos nossos pais.

6.4.25

Para efeitos de estudo do comportamento das massas e do valor e cotação atribuídos sob o efeito de rebanho, o que distingue a série "Adolescência" do chocolate do Dubai?

4.4.25

É raro, mas às vezes também acordo a meio da noite com todos os meus medos estendidos comigo na cama. Que dia será o de amanhã? Incapaz de ajustar a vida que tenho à desgraça do mundo —  um de nós está muito errado e recusa-se a ceder —  procuro exercitar o hábito da esperança, encosto-me ao coração bravo dos meus filhos, sabendo embora que também eles se desgostam e talvez em segredo me acusem de os ter iludido à nascença. Que triste é o tempo da raiva e da guerra que nos coube, dos homens acossados, da turbulência moral, da imprevisibilidade da hora seguinte. Eu sei, nunca foi de outro modo. Muitos houve assim e até bem piores, mas não se vangloriavam da civilização, das leis, da ordem e da democracia, nem discursavam pela justiça ajeitando os nós de gravata, nem alardeavam as conclusões dos mais recentes estudos sobre a saúde mental e a importância os afetos, nem havia métricas para os índices de felicidade dos povos avançados.
Por estas e por outras é que sou ateu, diz o meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno. É verdade, se ao menos deus desse um ar da sua graça! O mundo inteiro à espera e ele nada, nem sinal de vida, sofre desse mal dos tiranos que alimentam o culto à personalidade mas não se prestam a dar satisfações a ninguém. Já muito faz em salvaguardar a perfeição do universo, as forças que regulam o movimento dos astros, o ocaso que se cumpre apesar de todas as catástrofes. 

27.3.25

São pessoas pobrezinhas, se nos sobra ou já não queremos temos de lhes dar. Foi assim que, ontem, a mulher do senhor Pereira iniciou as netas no modelo de caridade de inspiração fascista. Saíram de casa aprumadas, de forma alguma consumidas pela existência dos miseráveis, mas antes com orgulho de lhes darem o seu excedente, os seus trapos ultrapassados, as malinhas fora de moda, lenços, boinas, chapéus, luvas, mantas e o mais que não tenha já lugar nos armários, onde as coisas entram e saem como na vertigem de um carrossel. Assim as meninas exemplares aprenderão que se pode salvar a alma e adormecer a consciência num instantinho e ainda antes de o mês findar. 

4.1.25

Aguardo hoje que me venham entregar em mãos a notícia da tua morte. Mais hora, menos hora, há de chegar por mensagem escrita, os caráteres serão breves, o portador limitará o desfecho ao verbo fundamental. Ficas desde já a saber: de ti, ninguém me ouvirá dizer que eras um homem bom, que a tua morte foi um equívoco de deus, que as coisas à tua maneira vão fazer-nos muita falta, mais isto ou aquilo que se forja no adro das igrejas para dar causa e corpo às lágrimas. Não. Se tens de morrer, morre com direito à tua humanidade, morre defeituoso, cismático, arrogante, sôfrego e obstinado. Morre belo, terno, vertical e sem remorso.

(partem sempre demasiado cedo os homens que me amaram e não sei se essa tragédia é deles ou minha. No dia em que morra eu, algum me sobreviverá? Quem contemplará a imóvel transparência do meu rosto e dirá, em surdina, tão cheia de força e graça ela era, tão doce o mel colhido entre as suas pernas, quem contará estas e outras mentiras necessárias à edificação de uma biografia?)

17.12.24

Não importa quantas vezes maculado por perdas, ausências e distâncias, dezembro terá sempre cheiro a lenha, canela e vinho do Porto. E sobre a lembrança das coisas que foram e jamais voltarão a ser, sobre as cadeiras vazias, a família reconfigurada, as infâncias já arrumadas em álbuns de retratos, triunfará, invariavelmente, o hábito rebelde da imaginação, o vício de fazer magia, a crença velha, tola e fundamental num mundo que tenha conserto. 

30.11.24

O viúvo octogenário sem descendência que nada em dinheiro tem sido chamado à razão por algumas quantas boas alminhas, sempre zelosas, no sentido de abrir o olho e se manter esperto quando as mulheres se acercam muito. Garantem-lhe que é próprio delas uma perversa inclinação para as fontes de abundância material e que, para açambarcar o que jorra, dispõem-se a simular estados de paixão assolapada, disfarçando, como atrizes de primeira, a repulsa pela decadência de todo o aparelho da masculinidade quando lhe mudarem a fralda. Tire-se o chapéu a tamanhas artes de representação, pois até os mais inteligentes caem na trapaça e, mortos de amor, entregam de bandeja, primeiro toda a ternura que os seus corações exaustos ainda podem, depois os códigos, os créditos e as contas. Farto dos avisos — e porque não admite que mulher alguma confunda nele a idade com tolice — o viúvo octogenário sem descendência tomou medidas e agora só aceita aproximação de homens. Há pouco mais de uma semana, apareceu na vizinhança deste blog com um que não ia além dos vinte e cinco anos e com isso parece ter aquietado o espírito desta boa gente, porque o facto não deu azo a uma única palavra.

19.11.24

Não há volta a dar: a rapariga da papelaria murcha quando a vida lhe corre de feição, como se a felicidade lhe fizesse sombra. Os doutores da psique e outros que naveguem nessa órbita terão entendimento para decifrar a causa do seu absoluto desinteresse por caminhos solares e sem espinhos, do prazer nas zonas turbulentas do amor. Não os havendo por perto, temos as velhas, sempre tão dispostas a elaborar em torno do mesmo facto durante horas, minuciosas no exame às coisas do espírito, insatisfeitas com versões redondas e acabadas. Eu, embora tenha entrado na papelaria só por rotina, com o pensamento a vadiar e os trocos já na mão para encurtar a estadia, assusto-me com o que para ali vai. Muitas são as acusações que enxovalham a dignidade feminina desde que há vida na terra: delírio, maledicência, inveja, feitiçaria, mesquinhez, manipulação, conluios vários de causas obscuras e outros delitos que – palavra de homem! – desarranjam o mundo. Mas se houver culpa que nos possa ser imputada é a da multiplicação do real. Quando um grupo de mulheres divaga, nada se livra do risco de ser estilhaçado em infinitos matizes e dimensões. A verdade caminha com pernas frouxas, só por gosto, na borda dos precipícios, onde a vista sobre o abismo se confunde com a do absoluto. E é com esse embalo que a rapariga da papelaria atira, muito enfunada, no instante exato em que me devolve as moedas que, por distração, lhe dei a mais:
– Sinceramente, às vezes o amor até dá sono.

30.10.24

Aos dezoito anos, a minha avó tripeira deixou-se raptar por um minhoto charmoso, culto e endinheirado, de profundos olhos azuis, sedutor por vocação e amante da boa vida. Como é próprio das paixões fulminantes sem contexto favorável, o desastre não tardou, mas entretanto dos escombros nasceria a minha mãe, herdeira privilegiada daqueles olhos azuis e por causa deles amiúde acusada de malícia, poesia e subversão. A cor exata desses olhos sobrevive no meu irmão mais velho, mas num modo ajuizado, com mais foco do que poesia, mais confiança do que malícia. O meu outro irmão, esse cometeu a ousadia de os adulterar: aproveitou deles a profundidade aquática mas esverdeou-os ao ponto de se tornarem afiados, claros e vibrantes como aventurina, muito difíceis de suportar. E nesta roleta genética, a mim e às minhas irmãs coube-nos o verde paterno, o verde grave e melancólico do Douro, térreo, desarmadilhado, sem o apelo dos abismos e da lonjura, embora uma das minhas irmãs do meio – a mais insubordinada –  tenha de nascença a íris pintalgada de preto e o número dois, minúsculo, escrito com um enigmático rigor. 
Pensei nisto tudo e no quanto se conta da história de uma família através dos olhos, ao ver a imperatriz e Joaquim atravessando a alameda, talvez vindos antecipadamente de Penedono para o fim de semana prolongado. O menino é a mais gloriosa evidência de que a imperatriz vergou todos os Pereira sem precisar de arma ou argumento. Herdou da mãe a pele apetecível, cremosa, e os laivos incendiários do cabelo, mas o que nele, definitivamente, revela que os Pereira não dominam como supõem, são os olhos. Tal qual os da imperatriz, os olhos de Joaquim têm a cor, a luz, o magnetismo, a transparência e a altivez de dois lagos de montanha, em cuja misteriosa profundidade se afundaram, por falta de vigor, os genes da família paterna. 

21.10.24

Ainda nem nove da manhã e já socializam como suricatas. Partilham os feitos domésticos e familiares do fim de semana, a receita de feijoada de marisco, a roupa que engavetaram, cheirosa, sem vincos e a cuja lavagem cuidadosamente acrescentaram águas perfumadas, amaciantes, antiácaros e tudo a que não resistem na passagem pelo supermercado, inteiraram-se das promoções do mês, abusaram das bimbys, foram motoristas dos filhos e ocuparam-nos em todas as horas do dia com atividades coloridas e estridentes para os proteger do tédio, coseram os fatos para o halloween, deram sacos de coisas velhas às empregadas que têm sempre uma prima muito necessitada. A sua maior ousadia foi estragar a dieta devorando um pacote de batatas fritas. A culpa mais insuportável foi a de o terem feito às escondidas dos filhos. 
E tu, o teu fim de semana? perguntam-me. Como a adolescência apanhada no delito, levanto a cabeça, desafiadora, embora no fundo me envergonhe do meu desinteresse em ser também útil, instrumental e eficiente. Eu? Então, neste fim de semana, Bárbara pediu-me que lhe tomasse conta da casa por uns dias. Juntamente com a casa, confiou-me a guarda de um amigo toxicodependente em abstinência, cheio de fantasmas e inseguranças. Não gosto da Bárbara, sinto por ela um asco visceral, anterior às nossas vidas, somos água e azeite. Custou-me aceitar o pedido, mas compadeci-me do amigo, ainda que me falte essa extensão do instinto maternal que dá a algumas mulheres o prazer de tomar conta de tudo o que bule e servir adultos como bebés. A minha amiga Rita partiu numa viagem de seis meses pela América do Sul, veio despedir-se e combinámos encontrar-nos na fronteira do Uruguai, no dia que separa os nossos aniversários. Qual fronteira? perguntei. A gente encontra-se de qualquer modo, disse ela. Entretanto, dei à luz uma filha com uma coroa na cabeça. Sofri muito ao expulsá-la, rasgaram-me por dentro os rendilhados áureos e as pedras preciosas, porém, quando a tomei no colo, chorei de felicidade, sempre quis ser mãe de uma mulher. Demoli, com as próprias mãos, as paredes da minha casa que estão viradas a nascente para ter mais panorama, se chover logo se vê. 
E tudo isto enquanto eu dormia. Imaginem quando acordada.

17.10.24

O código de conduta da escola assemelha-se cada vez mais ao regulamento de um estabelecimento prisional. Quando os mestres desaprendem a maestria e rascunham assim os princípios do futuro, todos os inocentes de hoje se tornarão, inevitavelmente, culpados amanhã. 

16.10.24

De um coração de mãe é hábito, por lirismo ou por engano, esperar-se paciência, coragem, tenacidade e abnegação em quantidades infinitas. Mas quem é que vai ao cúmulo de esperar sensatez? A mulher do senhor Pereira, por exemplo: no que por defeito pecou com as filhas, por excesso pecou com o caçula. Tem por ele uma paixão alucinada, que deforma, desculpa e ampara exageradamente. Assim criou um homem sem graça, rasgo ou vocação, satisfeito com a concavidade do sofá e a comida requentada, inapto para as coisas fundamentais da vida, desde a autonomia doméstica até ao entendimento amoroso.
O senhor Pereira adianta-se na salvaguarda da própria inocência:
– A minha mulher é que estragou este rapaz. 
Em boa verdade, que culpa havia de ter ele se, enquanto pai, se especializou na imposição de regras e razões, deixando à mãe o cuidado com as coisas quotidianas e menores, que é onde, pela calada, se semeiam os maus hábitos? Embora arregalados, os olhos da autoridade são amiúde desatentos. Obcecados com a manutenção da ordem, regulam a aparência, vigiam a superfície e distraem-se dos perigos que fermentam na intimidade. 
– Foi sempre um rapaz muito sensível – insiste a mulher, um primor na arte de ignorar estocadas. Nem vacilou no dia em que atendeu o telemóvel do marido e do outro lado uma voz de fêmea, sim, amor, e havia de tombar agora por tão frívola acusação? Encobre as deficiências de caráter do filho louvando-lhe a sensibilidade, mas o recurso é fraco e equivocado. Sensível é quem sente profundamente a dor dos outros, não quem chafurda nas próprias dores. E, não bastasse a distorção, atribui-lhe também o estatuto de vítima, lembrando, mais uma vez, como a imperatriz burlou o coração dele fazendo uso de feitiços e talentos que enfim, é melhor calar-me para não dizer o que não fica bem na minha boca. Mas um dia ele vai encontrar a mulher certa. 
– Se Deus quiser. – remata o senhor Pereira.
– Sim, claro, se Deus quiser.
E ei-los outra vez harmonizados, se não nos princípios e nos processos, ao menos nas soluções. Deus que desate os nós que a arrogância aperta até à cegueira.

14.10.24

Dá-me um instante que eu possa nunca mais lembrar. Tenho o coração atulhado de coisas inesquecíveis, o passado é tão feliz que o presente se condena a perder sempre. Dá-me um instante que pouco importe mas, espera, não tão pouco assim pois então eu acabaria a lembrá-lo pela inutilidade. Um instante que seja transitório e estéril como um vento breve, sem causa ou consequência, que não lance sementes nem deixe destroços, que seja tudo e o seu oposto, que se esgote, se anule e enterre, como um empréstimo que nos salvou a vida mas que, depois de pago, é como se nunca tivesse existido. 

8.10.24

Deixe-me ser triste se eu quiser ser triste, mãe. 
Acontece a certas pessoas uma espécie de vocação para a infelicidade e se isso não foi ainda validado pelas ciências de laboratório, há de ser pelo menos evidente a quem estuda pelos olhos dos outros, que é onde dizem estar resumida toda a matéria da vida sentimental. Só assim se explica que a realização de um sonho nem sempre remedeie a angústia precedente. Veja-se a rapariga da papelaria. Na vizinhança deste blog, foi sempre a coitadinha, a desgraçada, a desiludida, a preterida, a injustiçada. Durante anos, a má sorte que teve aos amores inspirou os lamentos das velhas e adoeceu os nervos da mãe. Foi também pela sua melancolia tão cândida, crédula e desarmada, que se embeiçou o Marco do ginásio. Nós todos fomos testemunhas enternecidas do seu sonho cor-de-rosa, que nem estocadas, maus prenúncios ou piadas de mau gosto abalaram. E, aparentemente, a rapariga da papelaria triunfou: de abandonada passou a ser aquela por quem abandonaram outra, mostrando-se assim como o destino opera vinganças e ajustes de contas mesmo à revelia dos seus protagonistas e enviando a fatura aos inocentes. Mas então, se é finalmente seu, inteiramente seu, o homem maduro, por que motivo anda ela outra vez de feição murcha, olhos tristonhos, boquinha a transbordar suspiros e tontices? 
A mãe atira-lhe à cara: nunca estás satisfeita com nada, nascestes pra chorar o que não tens. Pede-lhe que se alegre por estarem agora, finalmente, as coisas no lugar onde sonhou. Que seja razoávelMas o grande talento da rapariga da papelaria é ludibriar a razão. É certo que finalmente lhe coube um amor feliz, mas, pensando bem, os amores felizes – que a certa altura se conformam à desinteressante condição de amores bem geridos – não têm história nem fazem cantiga. É o elo precário de um amor difícil, improvável ou trágico que edifica. E, de resto, numa papelaria onde pouco mais se faz além de raspar lotarias, carregar títulos de transporte e dar um jeitinho ao quotidiano com dois dedos de conversa, é urgente um ato de sacrifício. Alguém tem de ousar uma demonstração de sangue vivo e fazer um manguito aos hábitos comodistas, maçadores e vulgares da felicidade. 

1.10.24

Sento-me diante do olhar compassivo de Buda disposta a imitar a sua dignidade, faço as orações, deponho os desejos e as armas. Pouco a pouco, entrego também as culpas, as lembranças, os fantasmas, os futuros possíveis, as palavras que devia calar e ainda agora proferi mais as que, por ter engolido, me envenenaram. Ao fim de algumas horas, começo a esquecer-me do sabor do chocolate, da água quente na pele, do cheiro a mosto e livros velhos, da textura e do vagar da tua língua, da atração pelo espelho, do gozo da vitória sobre os adversários. O meu corpo baloiça suavemente, o coração bate lento nas pontas dos dedos, cheira a canela e a sândalo, as velas cintilam no altar, há bailarico e foguetes num lugarejo vizinho mas já só ouço os rumores do jejum e o ranger das madeiras antigas. Estou quase lá, onde nenhuma guerra me convoca, nenhuma causa me seduz, o rosto do inimigo é branco, todos os laços se desfazem, não sou mais filha, irmã, mãe e amante, a minha palavra não vale um cêntimo, estou livre de servir e ser servida, quase lá. Quase. No fundo da sala, bate com estrondo uma porta por desleixo, depois uma risadinha adolescente e várias outras por contágio. Sacudido, o meu coração retoma o pulso original, o sangue levanta fervura e recupero toda a minha humanidade, as minhas raivas, os meus delírios, as minhas ganas, a minha visão turva, apaixonada, do real. Que alívio. 
Sempre quase lá, mas nunca mais do que quase.

27.9.24

Notemos essas grupetas que gostam de elaborar, online e offline, acerca do flagelo que é a falta de hábitos de leitura. Uns do meio literário e educativo, outros somente opinadores a quem o ócio desencaminha mais do que o mundo precisa, mas todos certamente superiores, pois dominam a receita para a elevação intelectual de um povo. Supõem-se cultos porque leem muitos livros, ignorando que a cultura não é um ato de consumo mas antes – e sobretudo – de entendimento e transformação. Notemos como são sobranceiros e autoritários, logo aí deixando em evidência que é parco e seco o fruto que dá tudo o quanto em si dizem cultivar. Limitados ao convívio e à comunicação uns com os outros, ora em corredores de academia ora em eventos de acesso condicionado, que margem lhes sobra para evoluir em visão e raciocínio? Tomam pela verdade o que supõem mas supõem generalizando, porque as generalizações são a tara de quem vive fechado em gabinetes, agarrado a manuais, trocando impressões com os pares. Esses, quando vêm defender, sem margem à dúvida, que o remédio para a gente gostar de ler é mandar ler – aplicando com rigor essa coisa desapaixonada a que se chama o hábito da leitura – não vos lembram aqueles pais provincianos muito certos de que impor ao filho quase infante a frequência de bordéis era o quanto bastava para os educar na paixão pelo sexo oposto?

24.9.24

 – Gosto dele como sei lá o quê. Acho que morria se ele me deixasse agora... 
É Gabi. Os olhos encharcadinhos de emoção e deslumbre, são quase dois anos de namoro para celebrar com o Marco do ginásio, nem sabe ela como chegaram até aqui sem percalços ou desavenças (mas sei eu). Comove-se também a cabeleireira, uma revoada de penas e lembranças murcha-lhe a expressão, ressoa nela todo o medo que atormenta a jovem. Bate na madeira, filha, bate na madeira e dá cá um abracinho, cúmplices na fraqueza, como nunca as vi no trabalho. 
Assentam as versões mais perigosas do romantismo nesta ideia de que o outro nos salvará. Em tempos que já lá vão, salvar-nos-ia de dragões, malfeitores, ruína financeira, má fama e até guerras. Hoje, salva-nos de levarmos sozinhos às costas o absurdo de existir. Ser romântico é uma enorme irresponsabilidade, quando não uma vergonhosa preguiça. 

17.9.24

Porém, não apareceste. Apareceu antes o meu pai, o que é natural, já que estamos às portas do outono, seria o tempo de irmos a Castro Daire comer arroz de feijão com salpicão, o tempo de ele interpretar a ondulação animal das minhas ancas e os meus excessos de apetite, tu não estarás grávida? e eu, tão leviana, menosprezando o quanto pode essa raríssima aliança entre ciência e intuição que nele era quotidiana, original e generosa: que disparate, nem pensar. Apareceu antes o meu pai, dizia eu. E fomos juntos de automóvel, ele conduziu com a serenidade real, era mesmo ele e não outro como acontece em certos sonhos que reconfiguram o mundo sensível, era exatamente sua a face, o olhar sóbrio, a constância, a lucidez, o longo silêncio que não usava para se ausentar mas para se fazer mais atento – quem fala muito distrai-se do fundamental. Súbito, parou. Desligou o motor, notou os próprios pés, disse sei qual é a embraiagem, o travão e o acelerador, mas não consigo usá-los, estou a ter um enfarte. Trocámos de lugar, sentei-me ao volante e antes de rodar à chave despertei, obviamente, sem qualquer vestígio dele, nem rosto, nem cheiro, nem gesto, nem sopro, embora me tenha levantado da cama com ele sobrevivo, vitorioso, em cada uma das minhas células.

13.9.24

Deito-me esta noite mais cedo na esperança de te encontrar num dos meus sonhos. Mas, olha, não é propriamente o sonho que eu quero, pois desse não guardarei depois mais do que lembrança. Quero os primeiros instantes do despertar, aquela vaga consciência de existir, a realidade dúbia e tão porosa, porque é aí que o meu cérebro crê na possibilidade de ali estares e ao corpo – que maravilha! – não resta senão concordar e obedecer. 

11.9.24

Os homens na praceta já não ficam extasiados à passagem da viúva e o que antes comentavam por desejo, comentam agora com despeito. Mas que mal lhes fez ela? Nenhum, além de andar na companhia do homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta e autorizar que a sua mão erre no dorso dela, devagar desde o sopé das nádegas até à secreta concavidade da nuca e de novo abaixo e outra vez acima. Não é um gesto particularmente original, mas nem todos têm ciência e tato para uma primorosa execução, e assim, à vista dos homens na praceta, é um crime. Ao deixar-se amar em público, a viúva matou a imaginação deles e a imaginação – sabe qualquer um – é o mais poderoso entre todos os afrodisíacos. 

9.9.24

À porta da papelaria, Alicita sacode o marasmo domingueiro da vizinhança com muito alarido e uma torrente de lágrimas. Ouço dizer que, às primeiras tentativas de rodar na bicicleta sem apoios, a menina deu um trambolhão espetacular e das mazelas resultantes constam um braço escoriado, um joelho aberto e duas mãozitas num estado de dar pena. A avó acorre com muita aflição e um frasquinho de desinfetante, mas a mãe, que é mãe e por isso se basta, cai de joelhos e lambe-lhe todas as fontes de sangue vivo como um animal. De passagem, admiro a cena e comovo-me. Que fáceis são as dores dos filhos pequenos! Sobre elas temos sabedoria, autoridade e remédio pronto. Difícil é a hora de acudir às feridas dos filhos crescidos, cujos corpos ultrapassam a medida do nosso regaço e, por terem perdido a inocência, não acham mais consolo em cantigas rimadas, falsas promessas ou medalhas de coragem.

4.9.24

Gosto de ouvir as estagiárias na pausa para o café. Não estranho o ritmo frenético nem o facto de se darem muito ao relato e nada à reflexão. São inocentes disso. Vieram ao mundo nesta época em que opinar já não é atributo de consciência, dever de cidadania ou estímulo entre bons companheiros, mas um tacho remunerado ao minuto ou ao caráter. Ensinaram-lhes que o que basta é contar, mas que difícil se tornou fazê-lo sem mostrar! Se peço que me expliquem, espera, e recorrem a uma fotografia ou a um vídeo, porque as palavras rareiam e dão trabalho. Começam todas as frases por imagina, embora depois, que pena, haja pouco para imaginar. Imagina é o novo é assim, uma muleta introdutória de significância nenhuma, uma bagatela sintática, um adorno para preguiçosos. Vamos simplificar, dizem de tudo – e simplificando extinguem maravilhas, enigmas, tensão, dúvida. Com elas, o mundo ganhou competência e agilidade, mas perdeu mistério e matizes.
Apesar de tudo isto, como eu invejo a sua insensata urgência no porvir, os absurdos ideológicos formulados a partir de indignaçõezinhas miúdas, benignas e passageiras, o olhar bovino sobre as profundezas da realidade. Invejo o quanto sabem de mundos e linguagens que desconheço, invejo o sonho cuja impossibilidade ignoram e por isso perseguem, invejo a magnífica, tentadora visão da curva em que ainda irão despistar-se, as primeiras vezes de tudo o que têm por fazer. Invejo, ainda e sobretudo – pobre de mim –, que com uma carteira nova ou um par de sapatos tão bem remedeiem todas as dores da alma.

2.9.24

Esta noite, Rosarinho pariu quatro filhos de uma assentada, com a ajuda dos pais, da avó, do marido e dos cunhados, do irmão caçula, das primas de Viseu e de mais uma data de familiares madeirenses a quem só se costuma ver a fronha em casamentos e funerais. Talvez eu já tenha visto isso em algum filme: uma mulher a dar à luz e uma aldeia inteira à sua volta. Ofereciam uns as mãos para que ela as mordesse nos picos de dor, outros contribuíam marcando o compasso da respiração e muitos apenas olhavam pelo simples facto de ser necessário assistir ao milagre para fixar na retina a autoridade e o pulso firme da natureza, que joga com as forças humanas até às bordas da insânia e, quantas vezes, para lá delas. Graças a uma porta entreaberta por descuido, também vi tudo. Rosarinho com o corpo escancarado, o sexo rasgado e a vida por um fio, a revirar os olhos, a expulsar os filhos, de seios completamente descobertos, já a postos para servir. Não avancei para ajudar. Assisti àquela hora tortuosa a lembrar-me de como ela conseguiu realizar o único sonho de que se alimentou toda a sua adolescência: casar com um dos melhores partidos do Norte. Reconheçamos o mérito. Era engraçada, loirinha, com dois sobrenomes bastante apresentáveis aos quais fez questão de acrescentar uma criteriosa seleção dos do marido e, embora tivesse frequentado os colégios que lideram os rankings, chegou à idade adulta a julgar que se fecha um x-ato empurrando a lâmina com o dedo, sem saber quantos centímetros tem um metro e na mais absoluta ignorância sobre o que se obtém ao somar os quadrados dos catetos. Mentirosa e má profissional, salvou o mundo quando decidiu dedicar-se apenas ao ponto de cruz e a workshops de confeção de macarons. Dizia que filhos, só havia de os ter por cesariana para não escangalhar o pipi, e que quem amamenta são as vacas. Vê-la ali tão exposta, na sua condição primordial, contorcida, subjugada, foi uma surpresa. Perto das quatro da manhã, os urros dela acordaram-me. Apalpei o breu, acendi o candeeiro, um alívio ver o quarto silencioso, limpo e só para mim. O descaramento com que esta gente me entra nos sonhos ao cabo de mais de um par de décadas!

30.8.24

Era capaz de me casar com o homem cínico só para pertencer à terra dele. Amaria prontamente esse outro rio, pelo qual posso dar o meu à troca, cansada que estou do escarcéu, das navegações em cortejo, dos arraiais flutuantes. Com a mesma vaidade com que apregoo as maravilhas do meu berço, seria capaz de dizer alto lá, que sou da raia, sou bilingue e melancólica, tenho uma casa virada a montante que os céus fustigam sem trégua com chuva miúda, noite e dia, dia e noite, em todas as estações. Faria votos a estas muralhas e esta ruína, ao verde tão verde, um verde mais que verde, um verde matizado e labiríntico que o punho dos homens não arrancou pela raiz nem dobrou para matar as suas fomes, à luz que doura as águas ao entardecer como se as premiasse pela espera, com suavidade e justiça, sem ostentação, sem esbanjamento, num brevíssimo estio. Posso ser de qualquer Norte e tanto me faz de qual sou, valem igual o norte invicto, o norte sangrado nos socalcos, o norte brumoso e húmido que range nos ossos dos velhos, o norte infernal e renegado que manda para lá do Marão. Todos se entendem e acolhem, tal qual os vizinhos de porta sempre aberta que dão de comer aos filhos uns dos outros e lhes limpam o nariz com o mesmo lenço de avental, por saberem que não é fácil a vida de ninguém. 
O homem cínico acha graça. Digo que quero ficar, tenho os olhos carregadinhos de paisagem, duas nascentes cujo frémito seguro com disciplina, e ele sorri, terno, como sorriria à criança pequenina que só se encanta por certas coisas do mundo porque ainda ignora as suas faces mais duras.

24.8.24

No velho regime de itinerância a que o calendário obriga, nossa senhora corre vilas e aldeias atendendo a todas as causas, às vezes em dois lugares distintos ao mesmo tempo, coisa que das divindades se espera e das mulheres se exige, nada faltando assim aos homens de boa vontade e das vontades em geral. É do socorro, dos remédios, da agonia, das angústias, do bom despacho, da boa viagem, do amparo, da graça, das dores, da esperança, do desterro, e quantas mais palavras ilustrem as cargas pesadas da humanidade e as recompensas que por elas hão de vir. Assim me espantou que, na fase de shoot out, a rapariga que rezava de joelhos na areia tenha acabado por ser, precisamente, a única a falhar o remate. Por sua causa, o sonho de toda a equipa ficou ali enterrado. Oficializada a derrota no mostrador eletrónico, ela atirou-se ao chão e chorou até o campo se ter esvaziado de cumprimentos, aplausos e disparos fotográficos. Parece impossível: pleno agosto e não sobrou, entre tantas nossas senhoras, uma que largasse a festa para acudir às suas orações.

18.8.24

Vivo mal com agosto. Nasci pelo solstício de inverno, mais de vinte e cinco graus e já me falham as pernas e o discernimento, arrasto-me pela casa, derreto na cama, hiberno aos domingos, temo a implosão do sol. Mantenho-me viva à custa de água e imaginação. Fecho os olhos e invento um arrepio, penso no regresso das chuvas, nas brisas de outono, no vento gelado de dezembro, num aguaceiro abundante que me apanhe desprevenida na rua, e a inevitabilidade de tudo isso consola-me. Com a lucidez que resta ainda me socorro da memória da noite de hoje, de estar contigo na Arca d' Água, deitada num desses bancos de jardim abençoados em todas horas do dia pela sombra das árvores - onde as mães se sentam a dar de comer aos filhos e os velhos pousam para chorar o tempo que já não é deles - e de acordar de repente, sem susto nem razão, com agosto todo colado ao corpo, tanto suor, tanta saudade.

14.8.24

Não fosse criatura minha, o rapaz voador havia de ser o meu maior amigo. Em quase tudo as nossas vidas se opõem  ele é amante de lonjura e precipícios, viciado em espanto, novidade e movimento, a mim agrada-me a terra firme, estar viva já tem sido ousadia bastante e se às vezes vou mais longe do que creio ser razoável é porque me leva ele pela mão. Não fosse criatura minha, eu procurá-lo-ia sempre que a coragem me faltasse, socorrer-me-ia da sua palavra lúcida e profunda, aprenderia com ele a interpretar pessoas, a enxotar fantasmas, a encantar crianças e animais, tomaria a amplidão do seu peito para repouso de todos os meus cansaços.
E o menino de cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno? Ah, por esse eu havia de apaixonar-me perdidamente, escreveria versos anónimos nas páginas do seu caderno, beberia, sôfrega e de queixo caído, cada uma das suas teses e considerações, encobrindo a minha ignorância para não merecer o seu desdém. Embora sabendo que manobra o verbo com intenção de seduzir, ainda assim me deixaria levar. Usaria brilhos e dourados, pintaria os lábios, seria feminina e lunar. Investiria toda a imaginação no momento em que também a mim ele pedisse o número de telefone no cimo da Torre Eiffel, como o vi fazer a outra. 
Porém, não me calhou ser, na vida deles, assim suave e passageira. Calhou-me ser mãe e não outra coisa qualquer. Calhou-me o útero, a semente, a casa, o amor primordial, o posto de vigia, o dever do mestre, a dor e o poder da expulsão. 

13.8.24

 – Já leu o livro dos velhos no lar?
Vítima da emboscada da mulher do senhor Pereira, sobressalto-me à entrada do pão quente. Ela bate os tacões como cascos de cavalo para se anunciar, ávida de atenção, e eu compreendo-a por saber o quanto investe no traje, na maquilhagem e, pela época, também no bronzeado. Notam-se-lhe na pele os brilhos gordurosos e obscenos de agosto, é acabada de chegar de oito dias inteiros de torra ao sol, lambendo-se com óleos de coco e cenoura, estirada em resorts de onde nunca sai por repulsa às misérias e aos maus cheiros das latitudes tropicais. Numa mão tem um saco de moletes, na outra quatro anéis e um gesto afetado. Sorri de cima, maternal, piedosa, como se, na verdade, pouco ou nada lhe importasse a resposta que darei.
– Qual livro dos velhos no lar? 
É fácil saber do que fala a mulher do senhor Pereira, já que ela só sabe falar do que todos os outros falam. Mas, por razões que resumo ao puro sadismo (cada um diverte-se como quer em agosto), não me apetece facilitar-lhe a vida, nem ela precisa. Nada desbasta o orgulho aparente desta mulher e por maior que seja a estocada, jamais descerá do pedestal para olhar o outro com empatia, o seu prazer está em apiedar-se do sofrimento alheio e é a pena que sustém a sua verticalidade. Triste e grave é o que acontece aos outros, coitadinhosDe resto, a traição do marido, as afrontas da imperatriz, o caráter mole do caçula, o divórcio da filha mais nova, as esquerdices da mais velha, perante tudo isso se apresenta superior, ostentando sempre o fato de lantejoulas e as bandarilhas com que o toureiro cria no público a ilusão de que o massacre é, afinal, uma festa magnífica. Não é que seja mestre na arte da superação, mas é-o, sem dúvida, na ciência do disfarce. 
– Este.
Da carteira tira o livro que ganhou o consenso e a comoção de todos, sem exceções, reservas ou ressalvas. Depois, torna a guardá-lo rapidamente como se me tivesse mostrado uma arma. 
– E então, presta?
Dizem as verdades de trazer por casa que não se discutem os gostos e eu discordo, pois se houver território onde o debate desafia e enriquece é por certo o da subjetividade. O livro de que a senhora fala, ofereceram-mo há mais de ano e meio, peguei-lhe com curiosidade e abandonei-o a meio, vencida pelo tédio. Acredito que seja um livro de boas intenções, nobre pelo propósito e pela dedicação, mas é frígido, sem rasgo, não convence. Vamos, claro, aceitar a hipótese de os meus lapsos de inteligência e sensibilidade terem condicionado a leitura e podem até perguntar-me quem sou eu para desdizer a maioria, essa entidade sapiente e provedora, dona dos tempos de antena e das colunas de opinião, que se nutre de si mesma e segue à frente para abrir caminho ao pensamento e poupar a gente a esforços demasiados e desnecessários. Sou ninguém. Mas como os gostos se discutem, olhe – se quer um livro sobre velhos que apodrecem em lares, sobre a memória e o corredor da morte, que comove e remexe no pavor de existir sem pieguices, entre com coragem e coração firme no Em nome da terra, do Vergílio Ferreira. Isto só penso, porque na hora em que vou falar, a cobardia amordaça-me e o senhor Pereira, vindo não sei de onde:
– São uma delícia estas conversas das senhoras. Uma delícia.
Mal ele abre a boca e já ela se lhe pendura no braço, gesto de fidelidade conjugal ou reflexo condicionado. O senhor Pereira pergunta-me se está tudo bem, como estão os rapazes, quando vou de férias, porque estou tão branca, tão magra, tão séria. Abala sem esperar respostas e eu fico a admirá-los, as costas muito hirtas, os sorrisos tão abertos, os cumprimentos largos e festivos. Como está, minha senhora? Continuação, senhor doutor. 
Todos envelhecemos, mas alguns, como se lhes fosse prescrita, à nascença, toda a má sorte do mundo, vergam muito antes de a idade o justificar, enquanto outros, porque lhe são concedidos privilégios de ordem genética ou modos mágicos de viver a vida, preservam até muito tarde o brilho e a saúde. Os Pereira envelhecem com teimosia, impõem-se à vida com propriedade e exuberância como se ainda tivessem créditos e recusam-se a desistir antes que as contas estejam todas saldadas. Tiremos-lhes o chapéu porque, apesar de tudo, triunfam.